Abril: Vivências na Clandestinidade, por Domicília Costa
Haverá perto de trinta anos um dos meus filhos, na época adolescente, sabedor de que eu crescera na clandestinidade e habitara diversas casas, em várias regiões do país, questionou-me sobre a quantidade aproximada de casas em que eu teria vivido antes do 25 de Abril. Não soube dizer-lho: apenas que tinham sido muitas; se vinte ou trinta, não sabia ao certo, nunca as contara...
Surpreendeu-se. “Assim tantas? Não será exagero?” E propôs-se contá-las ele, à medida que eu as ia enumerando. Só nos meus primeiros dez anos de existência contámos mais de uma dúzia, ora na região de Lisboa ora na do Porto. Espanto redobrado dele, que desde que nascera sempre vivera na mesma casa. Interrompeu a contagem, desafiando-me: porque não escrevia eu a “minha história” para que ele próprio e o irmão um dia a pudessem ler?
Na ocasião achei-lhe graça, mas não dei importância à sugestão. Pensei que, se o fizesse, o mais certo seria ele entretanto desinteressar- -se; e provavelmente o irmão também não estaria interessado em vir a saber, ao pormenor, o que já sabia “por alto”. Em suma, seria pura perda de tempo.
Mas, de longe em longe, ele ou o irmão voltavam a falar-me nisso. Até que um dia decidi-me a escrever, relembrando tão fielmente quanto me permitia ainda a memória, a minha vida nos mínimos detalhes, dela constando, como é óbvio, uma parte substancial da vida dos meus pais e até o pouquíssimo que sabia da vida dos meus avós maternos e paternos.
Justamente porque não era, de todo, minha intenção tornar pública a “minha história”, mas tão-só fazê-lo para mais tarde ser lida pelos filhos que tinha e pelos netos que pudesse vir a ter, comecei a redigi-la à mão em cadernos escolares, pelo que inicialmente lhe dei o nome de “Caderno de Memórias”. Como os cadernos se foram sucedendo, até porque também fui introduzindo anotações datadas, tornando-os num quase diário, decidi numerá-los e mudar-lhes o nome para “Retalhos de Uma Vida”. Quando resolvi dar conhecimento aos meus pais do que andava a fazer e pedir a sua colaboração, não obstante a ambos tivesse agradado a ideia, infelizmente eles já há alguns anos tinham voltado para a região de Lisboa, e a distância que nos separava e os graves problemas de saúde que um e outro tinham já não lhes permitiram ajudar-me.
(…)
E não é verdade que nos queixamos de que uma parte significativa dos nossos jovens desconhece, na essência, o que foi o regime anterior ao 25 de Abril, quando muito sabendo, vagamente, que era uma ditadura?
(…)
Quando me convidam a falar do meu passado como resistente antifascista na clandestinidade, aceito fazê-lo como representante – de entre outros ainda possíveis – das crianças e dos jovens que viveram essa experiência. E os elogios que me dispensam, recebo-os com constrangimento porque essa vida não foi uma opção nossa mas sim dos nossos pais. Só muito mais tarde é que cada um de nós pôde, efectivamente, optar pela militância ou abster-se de o fazer. (…)
Aos que dizem ter eu sido a/o jovem que mais anos viveu na clandestinidade em Portugal (não sei se isso é exacto!), responderei que se mérito existisse nisso ele se deveria, em primeiro lugar, ao facto de os meus pais terem imposto ao Partido que eu os acompanhasse e a uma vigilância aturada, ao longo dos anos, principalmente da minha mãe, em dois casos comprovados; em segundo lugar, aos camaradas que, sendo presos, e apesar das torturas que possam ter sofrido, não nos denunciaram; e ainda à confiança e à solidariedade de alguns vizinhos, como adiante demonstrarei. (…)
Estas são algumas passagens da Introdução ao livro Abril: Vivências na Clandestinidade, escrito pela camarada Domicília Costa. Um retalho da nossa história que vale a pena conhecer, contado na primeira pessoa.
Quem quiser adquirir o livro pode contactar a camarada por email: domiciliamariacosta@gmail.com
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