MANUEL CARLOS SILVA: DESIGUALDADES DE CLASSE E ÉTNICO-RACIAIS: UMA SECULAR E PESADA HERANÇA MAIS SUPERÁVEL NO ECOSSOCIALISMO
MANUEL CARLOS SILVA: DESIGUALDADES DE CLASSE E ÉTNICO-RACIAIS: UMA SECULAR
E PESADA HERANÇA MAIS SUPERÁVEL NO ECOSSOCIALISMO
No quadro deste painel sobre Desigualdades de classe e étnico-raciais
[Fórum Ecossocialismo 2021 – Porto], a questão a ser colocada, antes de mais,
não só para cientistas sociais como para os todos os cidadãos e cidadãs,
poderia resumir-se do seguinte modo: será o capitalismo, nomeadamente esta nova
fase do capitalismo financeiro com tudo o que significa de tremendas
desigualdades sociais e mercantilização da vida, de crises cíclicas e guerras,
de saldo negativo para a democracia e devastação ambiental o sistema final da
história, como sustentou Fukuyama (1997), ou, sendo o capitalismo um sistema
histórico como outros no passado, é não só objeto de crítica como passível de
ser eliminado e superável pelo ecossocialismo, como sustenta o marxismo desde
os seus fundadores Marx-Engels? E, se assumimos esta segunda tese como
sustentada histórica e logicamente em termos de justiça social, quais os
caminhos, as fases e as precondições de construção de uma sociedade
ecossocialista?
As forças anti-sistémicas, ao gizarem as necessárias estratégias e táticas,
terão de operar uma abordagem das desigualdades de classe, étnico-raciais e de
género numa perspetiva interseccional e multidimensional, o que suscita algumas
questões para debate, para o que marxistas ortodoxos e tradicionais partidos de
esquerda não estão suficientemente equipados, ao relevarem apenas o conceito de
classe e descurarem outros conceitos articuláveis como os de género, idade,
raça/etnia, nacionalidade.
As desigualdades e hierarquias sociais, nomeadamente de classe, de género e
étnico-raciais eram assumidas como fenómenos emanados da vontade divina ou como
simples produto da ordem natural das coisas até à Revolução Francesa no século
XVIII e ainda hoje nalgumas sociedades. Tais desigualdades postas em causa
pelos iluministas no século XVIII mas ainda a um nível essencialista e
metafísico, não o foram realmente em relação ao povos colonizados por parte das
potências colonizadoras (Portugal e Espanha primeiro e depois Inglaterra,
França, Bélgica, Holanda, EUA) na base da pertença étnico-racial. Às velhas
legitimações das desigualdades sociais nos sistemas esclavagistas, feudais,
oligárquicos e despóticos por razões religiosas, de linhagem, casta ou pertença
étnico-racial sucederam-se desde as revoluções burguesas nos séculos XVIII-XIX
até hoje outras visões em favor da burguesia nomeadamente a concepção
meritocrática, impulsionada pela corrente estruturo-funcional (Durkheim
1977/1893, Parsons 1988/1951, Davis e Moore 1976/1945) e assente na teoria da
estratificação ancorada na divisão social e sexual do trabalho em consonância
com a diferenciação de talentos e competências ora inatas ora aprendidas; ora
ainda pela teoria circular e fatalista de dominação das elites (Pareto 1989) ou
pelas teorias do poder, sobretudo de neoweberianos como Dahrendorf (1959), em
que os fenómenos de apropriação económica e fechamento social eram derivados do
poder como algo ‘coisificado’, substantivado. Foi necessário que Marx e Engels
(1998/1846) primeiro com o conceito analítico de classe e a luta de classes
como motor da história e inúmeros marxistas depois nomeadamente teóricos
da dependência (Frank 1961, Marini 1973, T. dos Santos 2011/1978) e do
centro-periferia (Wallerstein 1990/1974, Arrighi 1971, Fortuna 1987) e, por
fim, teóricos decoloniais (Quijano 2000, Dussel 2009) trouxessem respetivamente
como lemas centrais a emancipação das classes e dos povos indígenas e negros
colonizados, sobre explorados e oprimidos, assim como a libertação das nações
dependentes e periféricas face aos países centrais e regiões-metrópoles
controladas pelo capital.
É proclamado aos quatro ventos o chamado modelo social europeu orientado
para a inclusão social, chegando mesmo a conjeturar o conceito de empoderamento
como um achado desse modelo europeu de combate à exclusão social, quando este
conceito é sociologicamente bem antigo e já presente nos vários clássicos,
embora com sentidos e conteúdos bem diferentes (cf. Silva 2009). Enquanto
Durkheim (1977/1893) entende a exclusão social como perda do laço sociomoral,
um fenómeno disfuncional e anómico numa sociedade, em que alguns indivíduos
estariam desestruturados, desvinculados duma suposta consciência coletiva
comum, para Weber (1978/1920) de maneira muito mais aguda e pertinente a
exclusão social seria resultante ora de formas de concorrência e competição nos
diversos tipos de mercados, ora de relações fechadas de certos grupos que
tendem a controlar o acesso a recursos, saberes e poderes, podendo essa
exclusão ocorrer na base da “raça, língua, religião, lugar de nascimento,
classe social, domicílio”. Com esta perspetiva Weber evidenciou uma protovisão
multidimensional e interseccional dos diferentes tipos de desigualdade e
conflito (de classe, de género, étnico-racial, religioso), perspetiva esta desenvolvida
nalgumas temáticas de fechamento e exclusão (o pobre, o estrangeiro) por Simmel
(1987/1903) e em processos estigmatizantes de rotulagem por Goffman
(1988/1963). Já, porém, para Marx (1974/1867) a exclusão social seria vista
como a desapropriação dos meios de produção e demais recursos políticos e
simbólicos, sendo excluídos não apenas determinados grupos vulnerabilizados
(vg. desempregados, minorias étnicas, sem abrigo), mas também assalariados
dependentes e sem controlo sobre os meios de produção.
Um dos objetivos do chamado Estado-Providência é o de assegurar a todos os
cidadãos e cidadãs uma vida digna em termos económicos, sociais, culturais e
políticos, que, combinando as potencialidades da maior intensidade possível da
democracia representativa com a democracia direta/associativa, implica a defesa
de direitos básicos como a alimentação, a educação, a cultura, a participação
política e, não menos importante, a habitação básica. Porém, apesar das
proclamações da dita ‘sociedade da abundância’ nas sociedades ocidentais e do
idealizado modelo social europeu, também no próprio coração do capitalismo
norte-americano e europeu, persistem mais de 100 milhões de pobres, realidade
esta que na Alemanha e na Europa levou os poderes políticos e ideológicos nos
anos 80 a substituir o conceito mais mensurável de pobreza pelo de exclusão
social, um conceito mais ambíguo e polissémico, que todos usam e abusam mas sem
convergência no diagnóstico e na solução. Neste sentido é preferível manter
prioridade teórico-conceptual e política do conceito de desigualdades sociais.
Para alguns autores como Santos (1995), que distingue e bem desigualdade e
exclusão social, ambas seriam inerentes à atual sociedade moderna, mas
reconhecidas e classificadas ao nível da retórica como ‘não legítimas’ ou que a
desigualdade ocorreria mais ao nível socio-económico e a exclusão ao nível
socio-cultural, o que obviamente não colhe, se tivermos presente os teóricos da
estratificação já referidos e que assumem a estratificação social como inerente
a toda e qualquer sociedade. A distinção entre exclusão e desigualdade social
pode obviamente fazer-se, mas trata-se de dois níveis diferenciados de
abstração que, embora possam reforçar-se mutuamente, o conceito de desigualdade
social detém prioridade analítica sobre o da exclusão social, em que esta,
assim como a pobreza são corolários do próprio sistema capitalista e suas
diversas formas de desigualdade. Em suma, a desigualdade deve ser analisada a
nível socio-estrutural, organizacional e interativo (Bader e Benschop
2018/1988, Silva 2009).
Tendo em conta as contradições insanáveis entre capitalismo e democracia,
ter-se-á de (i) minar a ordem neoliberal dada como ‘natural’ e
‘inevitável’ (TINA- There is no Alternative), apresentada numa nova
roupagem tecnocrática, peritocrática e/ou celebratória pós-moderna; (ii)
desconstruir a acomodação da social-democracia ao neoliberalismo – aliás em
crise em diversos países; (iii) alertar contra as ameaças e
combater as derivas xenófobas e racistas da extrema-direita. Tal implica hoje
criar a nível socio-político um ‘poder tático’ (Wolf 1974) mas em função do
poder estratégico, solidificar ‘contrapontos’ e movimentos contra-hegemónicos
(Wertheim 1971:155, Silva 2000:294, Bourdieu 2001), mas para tal importa reforçar
o Estado Social (saúde, educação, habitação) e revalorizar, em nome da
segurança e bem-estar das pessoas, propostas e lutas concretas a nível
nacional. A segurança deve ser um conceito a ser reapropriado pela esquerda em
termos de segurança existencial, socio-económica e não deixar ser cavalgada
pela (extrema)direita em termos securitários, policiais e militarizados. Mais,
sem descurar a luta por meios legais a nível estatal e supraestatal, importa
solidificar as diversas lutas contrahegemónicas com base nos movimentos
sindicais, camponeses, indígenas, ecológicos/ambientais, antirracistas,
eco-feministas, LGBTIQ+ e doutros grupos explorados, dominados, discriminados.
As forças anti-sistémicas, inspiradas numa primeira fase por uma utopia
realista, assente numa articulação e aliança entre movimento sindical e outros
movimentos sociais, eventualmente com pactos conjunturais com forças
reformistas em função de graduais conquistas sociais, deverão ter, porém, no
horizonte de médio-longo prazo, o ecossocialismo. Se as forças progressistas e
os partidos de esquerda na Europa, nomeadamente do Sul, não mudarem a Europa
por dentro, tal como aliás noutros continentes como a América Latina – e é
provável que isso não aconteça – não restará às forças anticapitalistas outra
alternativa que não seja a via da rutura mas com fortes movimentos sociais
(Silva 2013). Alguns teóricos decoloniais críticos como Lander (2006),
Grossfoguel (2016) e Santos (2017), certamente críticos quer dos conservadores,
quer dos neoliberais, quer mesmo de sociais-democratas, arvoram-se todavia
também em críticos de Marx e do marxismo e apresentam-se como criadores de uma
‘nova teoria crítica’ face à ‘velha teoria crítica’ da Escola de
Francoforte, considerando as teorias marxistas e neomarxistas como subsumíveis
e convergentes com a narrativa civilizacional ocidental hegemónica. Mais,
apontam como horizonte o que designam de pós-capitalismo combinado com a também
designada democracia radical e/ou de alta intensidade, caindo na armadilha de imputar
a Marx e Engels uma crença positivista e cega na ciência e na técnica e até
atribuir-lhe corresponsabilidade na implosão da experiência do dito socialismo
real na ex-URSS, teses estas que, inicialmente embrulhadas em narrativas
pós-modernas, nos exigem alguma vigilância crítica.
Para responder à crise económica, ecológica e civilizacional (cf. Lowy
2013, Ribeiro 2017), ecossocialismo é um objetivo estratégico de longo prazo
mas deve constituir alavanca de organização e ação coletiva hoje e agora nos
vários campos de luta, também em Portugal. Ele não surgirá por decreto ou por
puras fraseologias declarativas tão do agrado de certos radicais mas que não
acompanham, nem sentem nem convivem com as próprias pessoas sofridas, as quais,
atingidas pela crise e em situação de desespero, buscam amiúde ‘salvadores’ na
extrema direita de cariz populista, xenófobo e racista como o Chega,
os quais apontam e até criminalizam certas minorias étnico-raciais como bodes
expiatórios. Se este discurso tem tido algum eco não só entre certas elites e
classes intermédias mas também junto de pessoas pobres incluindo trabalhadores
desempregados ou precários mas desinformados e despolitizados, impõe-se às
forças democráticas e de esquerda retirar espaço à extrema-direita e combater
as suas ideias e objetivos em prol dos grandes grupos económicos e de um Estado
securitário, autoritário, fascizante. Mais, importará justamente mostrar
às pessoas vítimas que os responsáveis políticos da sua situação de desespero
têm sido justamente os governos do PSD/CDS e inclusive, em grande medida, do
próprio PS. Porém, como militantes pelo Ecossocialismo, importa sabermos como
reorganizar as forças de esquerda no atual panorama nacional, primeiro em
plataformas eleitorais e, em fases posteriores, em acordos/fusões de forças à
esquerda, nomeadamente do BE, do PCP/PEV e outros partidos de esquerda que,
embora menos representativos, devem também ser convocados.
Concluindo, as desigualdades de classe e étnico-raciais não são fatalidades
da natureza humana nem sequer efeito do princípio meritocrático mas resultado
duma determinada estrutura social de desigualdade em torno do controlo (ou não)
dos meios de produção e de dominação de classe, étnico-racial e de género e,
como tal, realidades superáveis na base de determinadas condições objetivas e
subjetivas (nomeadamente organização e utopia), em direção ao ecossocialismo
como projeto emancipatório da humanidade.
Porto, 9.out.2021
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* Sociólogo, professor universitário e investigador no Centro
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CONVERGÊNCIA11 DE NOVEMBRO DE 2021
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