O valor do trabalho doméstico e do cuidado

Foi noticiado, há poucos dias, um projeto liderado pelo CESIS (Centro de Estudos para a Intervenção Social), em parceria com a CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e na Empresa), que visa investigar o valor monetário do trabalho doméstico e do cuidado e o estado da assimetria de género neste campo da vida social. No site do CESIS, pode ler-se "O valor anual do trabalho não pago de cuidado e doméstico em Portugal poderá representar entre 40 mil milhões e 78 mil milhões de euros (dependendo da metodologia utilizada)." Mais à frente, lê-se "Independentemente da metodologia adotada, as mulheres serão responsáveis por mais de dois terços do valor monetário do trabalho não pago de cuidado e doméstico."

O movimento feminista, sobretudo nas suas correntes marxista, socialista e radical, prestou bastante atenção ao trabalho não pago executado, sobretudo, pelas mulheres, e desenvolveu análises para demonstrar que o capitalismo vive também da exploração deste trabalho, invisível, desvalorizado e muitas vezes propagandeado como "trabalho de amor" (p.ex., Hartman 1979, Fraser, 1994, Tavares et al 2009, entre muitas outras). 

Para estas teóricas, capitalismo e patriarcado constituem dois sistemas distintos que se interseccionam, mas não sempre da mesma forma, dependendo do tempo e do lugar. Elas e nós também mostrámos que a grande maioria das mulheres não está em casa "só" a fazer o trabalho doméstico e do cuidado. Esta foi uma construção da ideologia da burguesia, infelizmente também seguida por setores operários, sobretudo quando reivindicaram um "salário familiar" para os homens para que as sus mulheres pudessem ficar em casa, tal como as mulheres das classes médias e dominantes. 

Importa, portanto, tirar daqui a conclusão relevante de que as mulheres das classes trabalhadoras e subalternizadas realizam uma dupla jornada de trabalho, sem a compensação nem a valorização que merecem. É, ainda, necessário realçar que muito do trabalho doméstico é realizado por mulheres negras. 

Algumas correntes, inclusive, avançaram com a reivindicação de um salário para este tipo de trabalho (por ex., Frederici 1975). Esta autora afirma, mais recentemente, que "o trabalho doméstico é o mais importante, no modo de produção capitalista, porque produz os próprios trabalhadores, sem os quais não há trabalho" (2021).* Conquanto me pareça correta a análise que está na base desta reivindicação, a ilação de exigir um salário para o trabalho doméstico me parece desajustada para uma luta pela igualdade e justiça social para todas e todos. 

Outras pugnaram pela coletivização destes serviços, exigindo cantinas coletivas e/ou comunitárias, assim como outros serviços partilhados. 

Hoje, com os avanços das políticas para a igualdade de género, talvez a assimetria entre homens e mulheres no desempenho do trabalho doméstico e do cuidado não seja tão abismal quanto era nas décadas anteriores. No entanto, as assimetrias ainda aí estão. 

A crise da pandemina do COVID19 veio expor as contradições e fragilidades em que a articulação entre capitalismo, patriarcado e colonialidade ainda carregam sobre a grande maioria das mulheres. 

Agosto, 2021

Maria José Magalhães


Referências:

Fraser, Nancy (1997) After the Family Wage: Gender Equity and the Welfare State, Political Theory, Vol 22, nº 4, 591-618.

Frederici, Silvia (1975) “Wages Against Housework”, Nova Iorque: Power of Women Collective and Falling Wall Press.

Hartmann, Heidi (1979) "The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism: Towards a more progressive union", Capital & Class, nº 1, 1-33. 

Tavares, Manuela; Matthee, Deidré; Magalhães, Maria José  e Coelho, Salomé (2009) Feminismo(s) e Marxismo: um casamento "mal sucedido"?, Revista Vírus, nº 5, https://issuu.com/revistavirus/docs/virus5, acesso em 17-ago-2021 

*<https://www.youtube.com/playlist?list=PLHiE8QPap5vTWhp68auvWdnYRrREtCg7->, acesso em 17_ago_2021.


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