Solidariedade com o Brasil, contra o fascismo - Entrevista a Flávio Carvalho


A solidariedade internacional tem sido um dos eixos de luta dos movimentos sociais. O Brasil vive um momento de grandes tensões e a expressão pública da nossa solidariedade é fundamental. Aproveitei este momento para uma entrevista a Flávio Carvalho, cientista social e, atualmente, membro da Frente Internacional Brasileira contra o Golpe e Pela Democracia.

a)     Sabemos, por algumas notícias que, desde o golpe contra a Presidenta Dilma Rousseff, os avanços conseguidos no combate à pobreza, na promoção da igualdade e de melhor educação e ciência têm sofrido grandes golpes. Qual é o balanço que o Flávio faz destes tempos de desgovernação do Brasil?

Sua pergunta me faz recordar que, quando a Dilma esteve em Barcelona, comentamos o receio de chamar Jair Bolsonaro de Fascista. Faz poucos anos. Ainda o tratávamos como “extrema-direita”. Hoje isso acabou. Dizer extrema-direita ao governo brasileiro hoje seria uma operação de limpeza, um retrocesso, uma vacilação.  

Claro que o Mundo pode debater os diversos tipos de novos e velhos fascismos. Porém, é inegável que Bolsonaro cumpre aquelas quatro velhas premissas: o sentido moral com requintes de fundamentalismo religioso; o totalitarismo e a violência como arma política e instrumento de poder; a reconstrução da velha nação (a velha política revestida de uma falsa novidade); e a hipocrisia que soube esperar o momento certo para “sair do armário” (atualmente, o significado da pós-verdade, e das Fake News). O Brasil, que se chamava de cordial, gentil, harmônico, sensual, festivo, foi construído na base de uma grande mentira, de uma profunda contradição, e de um incômodo tragado durante muitos anos: somos um país tão hipócrita quanto qualquer outro. Mas, como em outros períodos históricos, a base, o financiamento, sempre foi o velho capitalismo selvagem, que sustenta os seus próprios interesses – e é capaz de passar por cima da vida de milhares de crianças, por exemplo, a cada dia. No fundo, estamos falando do mesmo de sempre, com uma nova roupa.

b)     Sabemos, também, que as pessoas se têm mobilizado para denunciar as medidas retrógradas. Do seu ponto de vista, estes movimentos sociais têm tido força suficiente para mudar o rumo da política no Brasil? Quais os sinais principais dessas lutas?

A força principal está na “velha novidade” dos movimentos sociais brasileiros. As lutas que antes eram consideradas Transversais (quase secundárias), mas que Sempre foram fundamentais na construção da sociedade brasileira, em questões específicas como o racismo e a luta antirracista, e em questões universais como o machismo e as lutas feministas. Essa é a principal diferença, além do contexto de enfrentar-se a um momento histórico inédito, a Sindemia – carregada de desafios e oportunidades (depende, no fundo, de nós mesmos).

O foco seguirá sendo a luta de classes, numa sociedade de capitalismo periférico, atrasadíssimo, agroexportador, como o brasileiro. Mas a luta passa necessariamente pelas diversidades que passaram ao cenário principal: os povos indígenas e as comunidades tradicionais, as questões homoafetivas, a nova ecologia, as novas culturas juvenis (não preciso falar do peso dos movimentos socioculturais para uma sociedade como a nossa!), não mais apenas como questões urbanas, mas dos movimentos de transformação rural. O Brasil não mudará se não se enfrentar a desigualdade recordista mundial de concentração da terra, dos meios de comunicação (e da difusão da riqueza cultural) e da violência racista, cotidiana. E é daqui que estão surgindo as principais respostas, a meu ver. O maior movimento social do Mundo, em proporções, o Movimento dos Sem Terra e suas variantes. As mídias alternativas anticapitalistas. Os novos Feminismos Jovens associados às novas frentes antirracistas. E seria impossível deixar de mencionar A Luta que Mais Cresce hoje no Brasil – pois é a que mais incomoda à elite moral, que a assassina a cada dia – a Luta LGBTIQA+. Não existe nada mais Antifascista do que isso.


c)     Por cá, em Portugal, temo-nos mobilizado em solidariedade com o Brasil, contra o assassinato da vereadora Michèle Franco e de outras/os companheiras/os, e também contra a extrema-direita que está no poder. Do seu ponto de vista, estas manifestações de solidariedade têm algum impacto para contribuir para a mudança?


Como fomos criados olhando para a Europa, e de costas para a América Latina, é com profundo lamento que somos obrigados a admitir que a solidariedade internacional dos movimentos sociais europeus terá ainda muito mais efeito, por menor que seja, do que imensas mobilizações realizadas por quem mais mereceria nossa atenção: as lutas do povo brasileiro, dentro do nosso país. Constituímos uma Frente Internacional Brasileira, a Fibra, na luta antifascista das brasileiras no exterior, e somos conscientes que nossos atos conseguem furar o bloqueio dos grandes meios de comunicação com muito pouco (por muitos mais que sejamos a cada dia). Os oligopólios preferem publicar a nossa foto em Barcelona ou em Paris, ao mesmo tempo em que escondem os grandes atos no Rio de Janeiro ou Manaus. Isso pode ser denunciado tanto como um absurdo (o bloqueio da grande mídia) quanto com o próprio ato de furar o bloqueio, ao mesmo tempo. Paradoxalmente, incidimos – “aqui de fora” – na mudança política, ao mesmo tempo em que denunciamos que a mudança não virá – jamais – de fora, e sim “de dentro”. Por isso, dizemos que estamos “mais por dentro” do que nunca.

A solidariedade internacionalista, no mundo globalizado, tornou-se ainda mais importante. O Brasil não se muda institucionalmente se a mudança não vier das ruas. 

d)     Em sua opinião, como poderá ser mais impactante a solidariedade com um Brasil democrático, antirracista, antipatriarcal e anticapitalista?


Excelente pergunta. Democrático, pois o Mundo já percebeu que seria extremamente contraditório que qualquer governo que se diz democrático apoie qualquer gesto bolsonarista, e para isso estamos, a sociedade civil nos demais continentes, além da América Latina. Ainda há governo europeu que se diz de esquerda, mas que quer assinar um apoio capitalista da União Europeia com o Mercosul, passando pelas mãos de Bolsonaro. Antirracista, pois no Brasil, A Escravidão é uma leitura tão (ou me atrevo até a dizer Mais) importante que O Capital, e espero ser bem compreendido. Antipatriarcal, pois é a oportunidade histórica, mundial, já não mais restrita à diversidade de lutas feministas (como uma coisa somente Das Feministas) e sim do significado desta expressão: não existe antifascismo, jamais, com a conivência com qualquer tipo de machismo. E o primeiro passo dos machistas, inclusive e principalmente da esquerda, é assumir (para depois perceber os privilégios, sem os quais não adianta fingir que os queremos eliminar) para logo transformar-se, transformando o mundo. Não há que esperar uma coisa e depois fazer a outra, já dizia Paulo Freire, nascido faz exatamente 100 anos. E anticapistalista, porque a base de financiamento do fascismo brasileiro e mundial é a mesma: se em plena Sindemia, são capazes de matar por mais lucros, imagine a que ponto nós chegamos! Não podemos permitir que prosperem.


e)     Em Portugal, assistimos igualmente ao avanço da extrema direita. Que mensagens nos pode transmitir para travar estes avanços e lutar contra o neofascismo?


Em Barcelona, na Catalunha, e em diversos cantos do Mundo, já percebemos: a luta antifascista deve ser unitária, dizendo as coisas pelo seu nome. Aqui nos juntamos na Unidade contra o Fascismo e o Racismo, com esse mesmo nome – que eu acrescentaria contra o Machismo. Dirão, sempre os mesmos, que nós alimentamos o fascismo. Já não perdemos tempo, escutando essas bobagens. Dirão que a culpa da ascensão de Bolsonaro foi o PT: e isso é não compreender o processo histórico, em perspectiva. com isso, já nao perderemos tempo. O fascismo se discute, se debate, mas, principalmente, se enfrenta, sem dar espaços, sem subterfúgios e com ativismo intenso - não somente como reação. Ou esquecemos o que aconteceu com a Europa, mesmo com diferentes contextualizações? Até quando vamos esperar que o líder de um partido como VOX, na Espanha, tenha que sair com uma camiseta vestido com a Águia Franquista, ou com a foto de Hitler – como já fez Bolsonaro, por outros meios - para que tenhamos Todos a coragem de dizer que ele é fascista? 

Agora, para mim, e para a maioria dos movimentos sociais brasileiros, felizmente, também não há que perder-se tempo (com quase 600 mil mortos numa Sindemia ainda crescente): é compatível sair da nossa bolha, de ficarmos falando entre nós mesmos, ao mesmo tempo em que seguiremos exigindo-nos, de nós mesmos, principalmente diante das nossas próprias contradições.  E por fim, uma estratégia de unidade mundial Antifascista? Só se for antirracista (questionando-se, sempre, com o que temos ao nosso próprio lado) e contra Todas as formas com que o Patriarcado se expressa. Não se pode falar de antifascismo sem perceber as mínimas merdas que cometemos, desde sempre mas, principalmente, na atualidade, com o tema das migrações.


Flávio Carvalho - formado em ciências sociais pela Universidade Federal de Pernambuco e membro da Frente Internacional Brasileira Contra o Golpe e Pela Democracia

Contacto1flaviobcn@gmail.com


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