DIREITOS DE PARENTALIDADE, A LUTA NO ACTUAL CONTEXTO

O texto do Jornal de Noticias, de 16 de Agosto de 2021, sob o título “Lojas vão a tribunal contra mães que querem folgar ao fim de semana” suscita uma apurada reflexão, acrescidas e complexas preocupações, repulsa pelas opções de classe e a agressividade do patronato e questiona o papel de alguns Sindicatos e as consequências na luta imediata e futura na defesa dos direitos da parentalidade, na protecção dos trabalhadores e na tutela das crianças que o regime Constitucional e legal protegem. 
 
A notícia do Jornal de Noticias espelha a triste realidade do mundo laboral. É indispensável fazer mais e melhor pelos trabalhadores. Há que exigir uma fiscalização da ACT - Autoridade para das Condições de Trabalho mais célere, rigorosa, eficiente e assertiva. Sem descurar nem banalizar a frente jurídica, há que actuar a todos os níveis. Há que não criar falsas expectativas e levar os trabalhadores para becos sem saída, que só prejudicam o exercício dos direitos e a sua aplicação efectiva. Existem bons e provados exemplos do passado. Há que ser consistente e credível na luta. 

Mover acções judiciais sem ter como primado o interesse dos trabalhadores e a protecção das crianças e não esperar uma reacção judicial das empresas, porque não se acautelou os devidos procedimentos e fundamentos é, no actual contexto, fragilizar a luta dos trabalhadores e abrir portas para que a jurisprudência caminhe no sentido de condicionar direitos devido a falta de pragmatismo e sentido de responsabilidade. 

O muito do que se conquistou pode ser posto em causa com ideia cega (não estou a analisar a justeza) de se procurar impor um horário de trabalho fixo, incluindo, cumulativamente a dispensa aos sábados e domingos, quando o actual regime legal prevê a flexibilidade (não dispensa) do horário de trabalho, ou seja, o ajustamento do horário de modo aos pais poderem apoiar, tratar, acompanhar e assistir os seus filhos menores. Lançarem ou provocarem batalhas judicias perdidas é prestar um mau serviço, fragilizar a luta dos trabalhadores e gerar a sua desconfiança no papel dos sindicatos. 
 
As atribuições aos trabalhadores com responsabilidades familiares de horário de trabalho estão estabelecidas nos art., 56º e 57º do Código do Trabalho e não excluem nenhuma solução incluindo a dispensa de prestação de trabalho, aos sábados e domingos e feriados ou noutro dia de descanso complementar e obrigatório, dado que o legislador pretendeu assegurar o exercício do direito à conciliação da actividade profissional com a vida familiar, consagrado na alínea b) do nº 1 do art. 59º da Constituição da Republica Portuguesa. 

No entanto, o regime legal não consagra objectivamente tal principio e, assim sendo, os trabalhadores ao requererem a flexibilidade devem ter a devida ponderação e fundamentação de modo a impedir que as empresas possam recorrer à via judicial com alguma sustentabilidade. È necessário requerer a flexibilidade no horário de trabalho sempre que possível com uma pequena margem de ajustamento e dispensa aos fins-de-semana com alguma abertura de modo a evitar, que após a intenção de recusa, mesmo com o parecer favorável da CITE ao pedido do trabalhador, possam as empresas recorrer, com previsível êxito, aos tribunais com prejuízo para os trabalhadores e desprotecção das crianças que a lei visa proteger. 

Por outro lado, o Código do Trabalho prevê, ainda, quanto à organização do trabalho, na Subsecção III, Horário de Trabalho, alínea b), n.2, art. 212º que na “Elaboração do horário de trabalho” a entidade patronal deve “facilitar ao trabalhador a conciliação da actividade profissional familiar”;

Conforme é entendimento da Doutrina e da Jurisprudência “A entidade empregadora apenas pode recusar o pedido com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se esta for indispensável, o que não se verifica”; 

O cumprimento dos preceitos legais da parentalidade deve ser cumpridos pelas entidades patronais à luz do princípio de que “as entidades empregadoras deverão desenvolver métodos de organização dos tempos de trabalho que respeitem tais desígnios e que garantam a princípio da igualdade dos trabalhadores, tratando situações iguais de forma igual e situações diferentes de forma diferente”; 

Aliás decorre do entendimento dos Tribunais superiores, sito a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23.05.2011 (Processo nº 505/09.8TTMTS.P1) “É evidente a relevância do interesse da ré em satisfazer a sua clientela, bem como a necessidade, para o conseguir, de dispor dos seus trabalhadores, bem como direito das entidades empregadora de organizar o horário de trabalho dos seus trabalhadores de acordo com as suas necessidades.” 

Tais interesses e direitos enfrentam porém, as restrições decorrentes dos direitos fundamentais dos trabalhadores, como os supra referidos, à conciliação da actividade profissional com a vida familiar, direito à protecção da família como elemento fundamental da sociedade e direito à maternidade e paternidade “em condições de satisfazer os interesses da criança e as necessidades do agregado familiar, que se sobrepõem àqueles em confronto e que só cedem perante eles, quando em presença de interesses imperiosos.” 
 
As empresas de grande dimensão, como por exemplo, grupo Inditex/Zara, que correntemente recorre à via judicial, devido á actividade que desenvolve, ao número de trabalhadores que tem ao seu serviço, os alargados horário de funcionamento das lojas que pratica, não tem motivos atendíveis, nem interesses imperiosos que não possam ser satisfeitos, para recusar a flexibilidade de horário de trabalho dos seus trabalhadores. Há, todavia, nos requerimentos elaborados a pedido dos trabalhadores, de ter o cuidado de os fundamentar, exigir uma plataforma móvel e não fixa e ter a sagacidade para no pedido de dispensa dos fins-de-semana comprovar a impossibilidade efectiva de não ter a quem deixar o seu filho para que as decisões judiciais não coloquem em causa o direito, dificultem o seu exercício e aplicação e ponham em causa a protecção da criança. 

Quando está em causa a colisão de direitos deve prevalecer o superior interesse da criança e cabe aos sindicatos não abrirem portas para que as empresas dificultem ainda mais o direito por força de aspectos lacunosos da lei. 

O que se pretende com o actual normativo e sua interpretação extensiva é reforçar o acompanhamento, assistência e apoio a menores de 12 anos ou sem limite de idade de filho com deficiência ou doença crónica ou oncológica e não dar a possibilidade às entidades patronais, discricionariamente, decidir em que casos existe esse direito consagrado no p.4, art. 68º da CRP, limitar, condicionar ou interpretar esse direito tornando-o inócuo, porque não foi essa, manifestamente, a intenção do legislador constitucional até porque isso significaria o total esvaziamento de conteúdo da consagração desse direito fundamental e muito menos foi o dos legisladores da Assembleia da Republica; 
 
O pedido da dispensa da prestação de trabalho em dias feriados, sábados e domingos para apoio, assistência e acompanhamento a filhos menores por motivo ou circunstâncias extremas (monoparental ou cônjuge ausente do Pais, por exemplo) enquadra-se no regime legal da flexibilidade de horário de trabalho da parentalidade. 

Porém ao banalizar-se este pedido está-se abrir portas à sua restrição e a incentivar o patronato mais cruel apoiado por fortes gabinetes de advogados, a recorrer judicialmente, transformando um direito que deve ser acautelado e exercido numa batalha jurídica permanente. 

Os direitos da parentalidade, nomeadamente, da flexibilidade de horário de trabalho para assistência, apoio, tratamento e acompanhamento de filho menor de 12 anos ou, independentemente da idade, de filho com deficiência ou doença crónica ou oncológica (alteração recente) sempre foram considerados pelos Tribunais de 1ª Instancia e Superiores. A rigidez de algumas posições, o afrontamento de algum patronato, sem a devida e adequada resposta, permitiu Acórdãos, como o referido no Jornal de Noticias, desfavoráveis aos trabalhadores. 

Mas há bons exemplos de Acórdãos, nomeadamente, do Tribunal da Relação do Porto que o retratam. Cito, sumariamente, apenas três desses Acórdãos que poderão ser consultados 

 • Processo nº 2608/16.3T8MTS.P1 Recurso movido por uma empresa do Grupo Inditex/Zara de sentença de 1º Instância que lhe foi desfavorável. 
 O CT/2009 deu concretização à tutela constitucional da parentalidade nos termos dos arts. 33° E segs, 127°, n" 3, e 212°, n° 2, sendo a própria Lei, no art. 56° daquele, que confere o direito, nos termos nele previstos, à atribuição de horário de trabalho flexível, o que, assim, não consubstancia violação dos direitos constitucionais do empregador à livre iniciativa económica e à liberdade de organização empresarial, nem limitação ilícita aos seus poderes directivos consagrados no art. 97° do CT.” 

  • Processo. 789/18.0T8VLG.P1 - Recurso movido por uma empresa da sentença 1ª Instância que lhe foi desfavorável. 
“(…) Não constituem "exigências imperiosas do funcionamento da empresa" para efeitos de recusa daquele horário (art. 57º, nº 2, do CT), a circunstância de a Ré laborar em dois turnos e o horário flexível implicar ajustes manuais ao sistema informático e/ou trabalho com mais que uma chefia. (…) Essas ou outras dificuldades de organização interna são ultrapassáveis e podem, apesar de tudo, ser minoradas com a concreta definição do horário pelo empregador, nos termos do art. 56, nº 3 do CT” 

  • Processo. n.º 14789/20120.7T8PRT.P1 - Recurso movido por uma empresa da sentença 1ª Instância que lhe foi desfavorável 
“A alteração/flexibilização do horário de trabalho de trabalhador com responsabilidades familiares é um direito constitucional consagrado nos artigos 59.º, n.º 1, b) e 67.º, n.º 2, h) da Constituição República Portuguesa, bem como no artigo 56.º do Código do Trabalho. 
Na interpretação dos citados normativos, são de aplicar as regras gerais do artigo 9.º do Código Civil, bem como as regras especiais do Código do Trabalho, como o princípio do favor laboratoris, não devendo o intérprete ignorar o contexto social dessa aplicação: uma sociedade que envelhece a “olhos vistos”, por força da baixa natalidade, e na qual aumentam as famílias monoparentais. 
A circunstância de trabalhadora com filho menor de 12 anos, cujo infantário fecha às 18.00h, e sem qualquer outro apoio – familiar ou institucional -, constitui exigência substancial que limita o empregador na sua faculdade de alterar o horário de trabalho para além dessa hora. 
Diferente interpretação dos citados normativos vota ao fracasso a prescrição constitucional da conciliação da actividade profissional com a vida familiar do trabalhador.” 

Não se faz a luta pela luta e há situações que devido ao nosso tecido normativo não se travam pela via judicial sob o risco de, sendo desfavorável, se estar a dar um sinal negativo aos trabalhadores na luta exigente e responsável na defesa dos seus direitos, em particular, de direitos essenciais, que implicam com a vida dos filhos menores de 12 anos, ou sem limite de idade com deficiência ou padecendo de doença crónica ou oncológica. 

Lutar é ter a responsabilidade de informar, esclarecer e motivar os trabalhadores em prol da defesa dos seus direitos, sem os levar ou fazer correr para becos sem saída. 

O suporte constitucional, legal, doutrinário e até jurisprudencial da matéria da parentalidade deve ser bem tratado, trabalhado e acarinhado de forma qualificada, sem prejuízo de se lutar por alterações que melhorem, alarguem e clarifiquem algumas das suas normas. A irresponsabilidade, a testagem dos direitos, colocação dos trabalhadores numa situação de cobaias de alguns objectivos que vai fazendo caminho, não serve os legítimos direitos dos trabalhadores, condiciona a luta, põe em causa expectativas e interesses legítimos e dá mais força ao patronato para alimentar guerras que sabe lhe podem ser favoráveis. 
 
O contexto social e político demonstra que não se pode ceder nos direitos, não se os pode fragilizar e dar armas ao patronato. Há lutas que se ganham nos locais de trabalho e outras há que se sabe que não se ganham pela via judicial. Lutar também é proteger o trabalhador e os interesses supremos de terceiros (as crianças). Uma derrota judicial não é o fim da linha mas é sempre um retrocesso e tem um sabor amargo quando se tratam de direitos essenciais dos trabalhadores. 

Não pretendei aprofundar toda a temática, mas lançar pistas e até provocações para uma reflexão séria, necessária e urgente sobre o tema da flexibilidade do horário de trabalho no quadro do regime legal da parentalidade. 

Maia, 18.08.2021 
António Neto

Comentários

  1. Excelente contributo para a luta pelos direitos das crianças - e das trabalhadoras e dos trabalhadores. Um abraço

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