Sobre militância e os riscos dos pequenos poderes

 

Dirigentes profissionais são essenciais à luta anti-capitalista, mas certa tendência ao estrelismo e eternização nos cargos pode acabar eclipsando os anseios coletivos. Para mudar o mundo, a esquerda deve enfrentar os seus vícios. 

"O vento não quebra uma árvore que se dobra. 
As lágrimas que descem pelo seu rosto não retiram sua visão."
Sabedoria popular africana

Precisamos de refletir sobre o perigo do excesso de profissionais e das longas liberações na esquerda. O risco dos pequenos poderes. O financiamento público dos partidos e a proibição das doações de empresas foram conquistas democráticas importantes. Mas a escala absurda de bilhões de reais em que vem crescendo o valor do financiamento eleitoral deve-nos levar a acender um alerta "vermelho".  Muito dinheiro de transferências do Estado não é uma solução para a esquerda. É um perigo imenso. Aparelhos grandes demais desenvolvem interesses próprios. 
Uma organização é uma associação de pessoas por afinidade de ideias. A sua força política depende da qualidade do seu programa e da capacidade de ser um instrumento de luta útil para a inserção nas mobilizações populares. Mas a sua fibra, vigor e robustez repousam, também, em sua força ideológica e moral. 
A força ideológica se alicerça na aposta estratégica de que uma revolução e, portanto, o socialismo são possíveis. A força moral depende da entrega, abnegação, honradez e integridade de seus membros. 
A coesão interna se estrutura sobre a coerência entre teoria e prática. Ambas só são sustentáveis enquanto permanece viva a paixão de que vale a pena. O perigo da desmoralização é imenso quando a militância é diminuída a uma rotina de tarefas e defesa de interesses pessoais. Surgem as inseguranças, dúvidas, incertezas estratégicas. O arrependimento de um passado que poderia ter sido vence a "saudade do futuro". As pessoas cansam. Os militantes "quebram".
Não é incomum que militantes liberados/as, quando são desprofissionalizados/as, desistam. O impulso impetuoso, intenso, arrebatado de que a causa socialista é a mais elevada do tempo que nos couber viver não é ilimitado. O entusiasmo "deslumbrado" dos anos de juventude tem "prazo de validade". Sair da condição de liberação não deveria equivaler à demissão de um emprego. Mas ninguém é de ferro. Temos, portanto, um problema. 
Não é possível construir organizações socialistas sem militantes liberados do trabalho. Um leninismo para o séc. XXI não pode prescindir de revoluncionários/as profissionais. A luta contra o capitalismo não permite improvisação e não é para amadores/as. Os inimigos políticos e sociais da causa socialista são ultraprofissionais com décadas de instrução e experiência. 
A formação de lideranças é uma hiperespecialização que consome muito tempo. Anos de estudos de marxismo, mas, também, de história, economia, sociologia, política e até psicologia e vai além. E, sobretudo, muitos anos de participação na luta dos trabalhadores e da juventude, nos sindicatos e nos movimentos sociais, assumindo responsabilidades e temperando o caráter. Mas ser um quadro político com responsabilidades dirigentes não pode ser o mesmo que ser um/a funcionário/a. Alguns/mas devem ser, mas não indefinidamente. 
Quando o número de ativistas liberados para a militância full time é desproporcional em relação àqueles que têm de trabalhar para a sobrevivência há um perigoso desequilíbrio. Ganha-se uma maior capacidade de intervenção, mas em compensação surge a necessidade imperiosa de manter o financiamento do aparelho, uma dinâmica estéril e improdutiva, uma deriva. 
O perigo é que os/as funcionárias/os possam dominar a organização e não o contrário. A direção controla o aparelho e este sufoca, subjuga e submete o coletivo. Camarilhas de cúmplices que devem pequenos favores uns/umas aos/às outros/as se disseminam. Se as profissionalizações são muito longas, de muitos anos ou até décadas, é ainda maior. 
O domínio de posições das quais se criou uma dependência material alimenta vícios e até maus hábitos. As pressões económicas de mudança do modo de vida e as ideológicas de procura de prestígio e autoridade são incontáveis. A vida fica mais difícil quando é preciso, primeiro, trabalhar para depois militar. O trabalho para a imensa maioria cansa e aliena. Não é à toa que o sonho dos/as trabalhadores/as é não ter que trabalhar para sobreviver. 
Na esquerda brasileira, o financiamento, mesmo de um aparelho, é, dificilmente, sustentável somente pelas quotizações dos membros, ou por campanhas de arrecadação de fundos. Não é impossível, mas é muito complicado. Quando os cargos dependem do controle de aparelhos e de mandatos, a eternização nos postos degenera em um fim em si mesmo. 
A armadilha deste tipo de adaptação social não pode ser diminuída. A cabeça acompanha o chão que os pés pisam. Há correntes que não são mais do que o nome de fantasia de parlamentares ou de uma direção sindical e estão, essencialmente, ao serviço de reeleições ininterruptas. 
Portanto, a construção de coletivos saudáveis exige uma atitude lúcida diante de pressões objetivas. Imaginar que alguns/mas entre nós são invulneráveis às pressões é ingénuo. Ninguém deve se considerar, moralmente, melhor do que aqueles/as que vieram antes de nós. Não podemos fazer o mesmo uma, duas, três vezes, repetindo os mesmos erros, e esperar resultados diferentes. Existem os perigos profissionais até dos pequenos poderes. 
Temos que estabelecer medidas de controle, normas de conduta, regras de funcionamento, e aprender a nos protegermos de nós mesmos/as. O número de liberados/as precisa de ser controlado preservando uma proporcionalidade com o número de militantes ativos. 
As profissionalizações devem ter prazos limites. É um processo difícil. Mas uma organização socialista não pode ter donos/as. Na conquista de posições de representação nos sindicatos e, em maior medida, nos mandatos parlamentares deve vingar o princípio da impessoalidade. O papel dos/as indivíduos/as é real e merece ser respeitado. Mas os cargos resultam de uma militância coletiva e não se deve fazer concessões ao estrelismo ou vedetismo. Ninguém brilha sozinho/a. Soluções inteligentes e planejadas permitem uma negociação de substituições. 
Um excesso de profissionais políticos/as ou técnicos/as estimula, também, um ambiente artificial e cria uma atmosfera, ideologicamente, poluída. Desenvolve-se uma cultura de autopreservação que envenena as discussões. O ambiente pode degenerar em intrigas, difamações, calúnias e insultos e se torna, psicologicamente, irrespirável. 
Um coletivo homogéneo demais valoriza uma permanente confirmação de ideias que gera cumplicidade e favorece a unanimidade, ou até o monolitismo, independente da crítica e da experiência prática. O enviesamento se cristaliza porque não tem freios. Não há espaço para nuances, matizes, reavaliações. Não há polémicas honestas, cultura de tolerância, possibilidade de discussões respeitosas, controvérsias inteligentes. Não há nem choque de ideias nem mecanismos de contra-tendências. 
"Estamos sempre certos, a realidade afirma as nossas convicções." Predomina uma tensão interna que estimula a radicalização até ao limite do ridículo, absurdo, grotesco. Uma escalada em que a posição mais sectária prevalece.

Ver também artigo de Mário Tomé no site da Convergência,
"Da importância dos funcionários no BE", link:


Por: Valério Alcary
(Valério Alcary nasceu em 1952, no Rio de Janeiro, é professor universitário, historiador marxista e político brasileiro. Estudou na Universidade Paris X, Nanterre, e na Universidade de Lisboa. Foi militante estudantil em Portugal, no período revolucionário do pós 25 de Abril. Atualmente, é professor aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Brasil.)

Retirado de OUTRAS PALAVRAS. Jornalismo de profundidade e pós-capitalismo

Comentários

  1. Curiosamente, a parte final deste artigo faz-me lembrar as duas últimas intervenções na XII Convenção do BE!

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