Ensino Superior e desigualdades sociais: do modelo fordista da sociedade industrial ao novo elitismo da "sociedade do conhecimento"
Nas últimas décadas a tese corrente apontada como desígnio nacional e imperativo internacional é a de que o ensino superior, os centros de investigação, os ministérios e as organizações devem primar pela excelência. Ora, importa problematizar este discurso acrítico e seguidista e evidenciar a agenda (semi)oculta, relembrando que (i) os cientistas e intelectuais não são seres ‘puros’ desligados da vida, assim como de interesses ora manifestos ora latentes de classes e grupos sociais; (ii) as lógicas e a evolução do ensino superior estão imbricadas no desenvolvimento desigual do capitalismo e suas formas de desigualdade e, para entender este processo, (iii) importa distinguir a fase industrial (pos)fordista até aos anos 1980/90 e a fase da dita sociedade do conhecimento no seio do modo de produção capitalista.
No que concerne a relação entre economia e política, sociedade e Estado, enquanto a tese liberal separa o económico do político, como se a propriedade ou as relações laborais nada tivessem a ver com poder e o poder, por sua vez, fosse uma esfera desligada da economia, a tradicional e ortodoxa tese marxista assume o económico como fator determinante e exclusivo dos fenómenos sociais, políticos e ideológicos, o que não corresponde ao pensamento dos fundadores do marxismo (Marx 1976/1859). Quer os teóricos funcionalistas da estratificação e da ideologia meritocrática (Durkheim 1977/1893, Parsons 1988/1951 e Davis/Moore 1976/1945) quer os teóricos do poder e das elites (Dahrendorf 1959, Pareto 1989) sustentam a diferenciação hierárquica de posições/ funções correspondendo a necessidades ou requisitos funcionais da sociedade (devendo os mais competentes ocupar as posições mais elevadas e melhor remuneradas e os demais as funções menos prestigiadas e pior remuneradas); a legitimação da desigualdade e pluralidade de elites; a ‘sociedade aberta’ democrática em constante fluxo, constituindo a educação a principal via de mobilidade social ascendente.
Perante os teóricos legitimadores das desigualdades sociais (de classe, étnico-raciais, de género), impõe-se contrapor as teorias da reprodução social, nomeadamente marxistas, que sustentam que, para além da herança e doutros fatores, o próprio sistema de ensino, nomeadamente superior, quando orientado pelas teses (neo)liberais e meritocráticas, contribui para legitimar o statu quo e reproduzir as desigualdades sociais, pelo que importa contestar a ideologia da meritocracia, descontruir a teoria apriorística dos talentos inatos e demonstrar a tese da reprodução (Bertaux 1978, Bourdieu 1980), combinando contributos marxistas e weberianos sobre a apropriação e/ou usurpação de recursos por parte de certos grupos em prejuízo de outros.
No quadro do capitalismo europeu e mundial, qual o lugar de Portugal no que concerne o ensino superior, a ciência e a tecnologia? Como país semiperiférico, Portugal tem alinhado de modo subserviente com as diretrizes, senão mesmo imposições, dos países centrais, nomeadamente europeus. Um caso exemplar foi a reforma do ensino superior em torno de Bolonha no contexto e com o objetivo da reprodução das classes dominantes e das elites políticas, científicas, culturais e de ensino através de (i) mecanismos tecnocráticos de hierarquização e competição entre universidades e centros de investigação; (ii) controlo de resultados (outputs) através de agências de avaliação, harmonização de graus e sistemas de acreditação; (iii) desregulação do sistema e restrições ao financiamento; (iv) introdução e implementação do Processo de Bolonha, em que o ensino superior é oferecido a dois tempos, níveis ou velocidades pautado por condições económicas dos candidatos/famílias e por cooptação e/ou filtro do mérito: um para as ‘massas’ (licenciaturas de 3 anos) e outro candidatos/as de ‘mérito’ com posgraduações (mestrados, doutoramentos e posdoutoramentos).
Relativamente a Portugal o ensino superior até ao fim da ditadura de Salazar e Caetano consistia em formar elites restritas das classes dominantes, salvo ligeiras cooptações por via de um sistema clientelar e paternalista, em que apenas 1% dos jovens dos 18 aos 23 anos tinha acesso.
Entre pós 25 de Abril de 1974 e os anos 90, verifica-se algum alargamento passando de 1% para 8%, prosseguindo uma fase de ajustamento e alguma abertura de acesso a jovens de classes intermédias, com menos recursos ou mesmo classes populares, conhecendo já nas primeiras décadas do século XXI uma expansão de jovens diplomados/as nas Universidades e Politécnicos (vg.13% em 2002, 32% em 2015). Porém, já desde os inícios do século XXI verificam-se também tendências de mercantilização e inclusive a formação de multinacionais de educação como objeto de negócio, embora com algumas resistências em Portugal e na Europa por sua própria tradição.
Hoje a pretensão de ensino de qualidade numa Universidade dita de massas sem assegurar as condições necessárias de financiamento e acessibilidade é uma falácia. Por seu turno, a obsessão programática (e amiúde retórica) pela excelência sem se preocupar de justiça no acesso e no sucesso, senão de todos, da grande maioria ao ensino superior é um novo embuste ideológico. No caso do Processo de Bolonha, o seguidismo do governo português perante a União Europeia sem ter em conta a especificidade do país e seu relativo atraso viria a ser prejudicial para determinadas formações, nomeadamente em letras e ciências sociais, crescentemente desvalorizadas. O subfinanciamento mina a estruturação dos cursos do primeiro e do segundo ciclo, sobrecarregando mais as famílias nos segundos e terceiros ciclos. Por fim, relativamente à ciência, tem tido lugar uma política de darwinismo ‘científico’’ quando se tem privilegiado e reforçado o financiamento de grandes centros já instalados e se dificulta o desenvolvimento em pequenos centros periféricos.
Ainda relativamente ao Processo de Bolonha, a nova filosofia e ‘espírito’ de Bolonha seria a renovação pedagógica e a centralidade do aluno/a no processo de aprendizagem. Certamente, há potencialidades para mudança pedagógica, mas, em vez de aumentar o pessoal docente e de apoio a tutorias, verificou-se a tendência à redução e à precarização de docentes, nomeadamente jovens investigadores/as. Ou seja, o resultado é que o ‘espírito’ de Bolonha se desvanece e resta a ‘carne’ financeira de Bolonha com a vinda à superfície duma política economicista e de hierarquização de graus e centros de investigação. Isto significa que, sob as retóricas em torno de Bolonha, há uma agenda semioculta de obter o maior número possível de diplomados com o menor custo possível e, sobretudo, uma política de competição da União Europeia face aos Estados Unidos de América.
A jeito de conclusão, poder-se-á dizer que os planos de desenvolvimento do ensino superior e da investigação não alcançarão os seus objetivos:
(a) se não houver uma mudança substancial no sentido de contrariar a lógica liberal e a ideologia meritocrática, proporcionando reais oportunidades de acesso e sucesso a todos/as;
(b) se não houver uma política de ensino superior que se oponha a: (i) princípios e práticas de desvalorização dos graus (licenciatura e, por consequência, mestrados e até doutoramentos); e à (ii) precariedade e à insegurança de docentes e investigadores/as, nomeadamente jovens.
Sob a razão ou pretexto da mudança de métodos pedagógicos e outros objetivos de harmonização de graus e mobilidade de docentes e estudantes, esconde-se una política de reforço do bloco capitalista europeu, ora em competição com os Estados Unidos, ora em aliança com estes perante outras potências instaladas ou emergentes.
Impõe-se uma política de ensino superior que articule a qualidade deste tipo de ensino com a investigação numa base de cooperação e a extensão universitária em prol das comunidades envolventes e torne real o acesso e o sucesso de jovens no ensino superior sob os princípios de equidade e justiça.
Manuel Carlos Silva
Sociólogo e professor universitário
Referências bibliográficas
Bertaux, Daniel (1978), Destinos Sociais e Estrutura de Classe. Lisboa: Moraes Editora.
Bourdieu, Pierre (1980), Le sens pratique. Paris: Minuit.
Dahrendorf, Ralph (1959), Class and Class Conflict in industrial Society. Londres: Routledge & Kegan Paul.
Davis, Kingley e Moore, Wilbert E. [1976(1945]], “Alguns princípios de estratificação social”.In O.Velho et al. (orgs), Estrutura de classes e estratificação social, Rio de Janeiro: Zahar, 115-132.
Durkheim, Émile [1977 (1893)], A Divisão do Trabalho Social. Lisboa: Presença.
Marx, Karl [1976 (1859)], Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundisse), Cidade do México: Siglo XXI.
Pareto, Wilfredo (1989],”A circulação das elites”. In M.B.Cruz (org), Teorias Sociológicas, vol. I: 449-457, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Parsons, Talcott [1988 (1951)], El sistema social. Madrid: Alianza Editorial.
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