A agricultura num país à espera que chova ....
“Nem mais uma gota de água
para o mar!”, foi a frase que há quase um século um político lançou na Índia, e
que rapidamente se expandiu por todo o mundo dando origem à construção
desenfreada de barragens até aos dias de hoje. Os ministros das obras públicas
de Salazar proferiram-na igualmente nos seus discursos e o armazenamento de
água para a agricultura, produção de energia e consumo público seria a panaceia
para a resolução de todos os problemas. Como vimos não foi, assistindo-se antes
a uma degradação ambiental à escala global, com a destruição de habitats,
perda de biodiversidade e efeitos de eutrofização com a perda da qualidade da
água além da amplificação dos conflitos sociais.
E as barragens e açudes têm também um tempo de vida útil. Não só pelo envelhecimento
de estruturas e órgãos hidráulicos, mas também pela sedimentação nas albufeiras
decorrente da erosão dos solos, por exemplo pelos fogos florestais, como
demonstram vários trabalhos de investigação em Portugal. Nas últimas décadas
passou a haver uma perceção desta situação e assiste-se mesmo por toda a Europa
a planos de remoção destas estruturas transversais e a uma consciencialização
dos efeitos da artificialização dos cursos de água.
Mas não em Portugal. Aqui, em pleno período de seca como o que
atravessamos, a atingir as situações dramáticas de 2005 e 1994 (nos últimos 3
meses choveu menos do que 17% dos valores médios) temos novamente a anquilosada
e reacionária CAP, que reúne os grandes agrários, a vociferar por novas
barragens. Repete a mesma lengalenga sempre que há seca. A agricultura é o
setor com maior peso no volume de água consumido a nível nacional,
representando cerca de 75%. Mas esta situação de escassez não é só de agora. O
último Relatório do Estado do Ambiente de 2020/21, revela que nos últimos 20
anos o país tem sofrido uma acentuada redução na disponibilidade de água, com a
completa ausência de anos húmidos.
Este peso seria bem menor se não fosse a crescente aposta nas culturas
agrícolas intensivas e híper-intensivas, designadamente de regadio, para mais
assentes no uso de pesticidas que empobrecem os solos e contaminam os
aquíferos. Fala-se em agricultura de precisão, mas a dualidade agricultura
intensiva e extensiva carrega os germes da simplificação enganadora, ou seja,
da uniformidade das relações capitalistas no campo, traduzida numa marcha
histórica irreversível. Nesta conceção, a agricultura intensiva é sinónimo do
moderno caracterizado pelo emprego constante de inovações técnicas e
acessibilidade a mercados. Segundo esta simplificação, veiculada pelo
capitalismo, a agricultura extensiva retrata afinal o atraso, a pobreza
condicionada pelo uso rústico das técnicas, os resquícios do passado que se
deseja em vias de extinção com o pressuposto teórico da uniformidade do capital
sobre o campo.
Neste cenário de seca o capitalismo não esmorece na fuga para a frente:
o ainda atual Governo optou por estabelecer programas de investimento em
558 milhões de euros para a modernização de regadios e outros 199 milhões para
novas infraestruturas de rega. A longo prazo, são 2 mil milhões de euros
canalizados para o regadio sem qualquer consideração pela redução de água
disponível nas águas superficiais e nos aquíferos. Em pungente contradição o
Governo definiu recentemente orientações e recomendações relativas à informação
e sustentabilidade da atividade agrícola intensiva, através da criação de um
projeto-piloto para a criação, ou adoção, de regimes de certificação de
produção sustentável nas culturas de olival e amendoal (na Zona de Influência
de Alqueva), nas culturas protegidas no Aproveitamento Hidroagrícola do Mira e
na cultura de abacate no Algarve. Nada disto foi implementado, nem poderá ser
dado que este tipo de agricultura vive exatamente da extração produtivista sem
cuidar da sustentabilidade e das alterações climáticas.
Atentemos que uma recente publicação científica alertou para o enorme
declínio de sobreirais e azinheirais no país nos últimos 50 anos e concluiu que
a agricultura intensiva tem tido influência no decréscimo de ambas as espécies.
O estudo aborda o período de 1965 a 2015 e demonstra que há uma perda enorme
das duas espécies, com uma aceleração superior a partir de 1990 decorrente
da entrada de Portugal na União Europeia e o consequente incremento
de intensificação do gado, face aos subsídios na altura disponíveis, a que
acresce aumento da temperatura motivado pelas alterações climáticas.
Face a estes cenários de alterações climáticas as teorias capitalistas
apostam no “set aside”. Partem do princípio que se aumenta a produção
agrícola em zonas de elevada capacidade, libertando os habitats naturais
de elevada biodiversidade. Não obstante, em nenhum país se verificou a sua
aplicação. Na verdade, a perda da capacidade produtiva dos solos pela
intensificação agrícola leva cada vez mais a agricultura produtivista a ser
encaminhada para as zonas marginais que teoricamente deveriam ser preservadas,
agravando as condições sociais no meio rural.
Nem mais uma gota para o mar, esbracejam os nossos agrários intensamente
subsidiados perante o cenário calamitoso que se avizinha …
* Rui Cortes
CONVERGÊNCIA1 DE MARÇO DE 2022
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