Da TAP só podem ficar despojos
A carta da Comissão Europeia ao Estado português sobre a restruturação da TAP
Em Julho, a Comissão Europeia escreveu ao Estado português a dar-lhe um mês para apresentar observações e informações antes do veredicto definitivo sobre a TAP.
Mas não para dar informações que o governo se tivesse descuidadamente esquecido de dar à primeira. O prazo é para alterar o plano.
As ordens são:
– Aumentar a “participação própria” da companhia no plano, o que significa reduzir ainda mais os custos salariais: despedir mais gente.
– Desinvestir mais. Em particular, abandonar definitivamente faixas horárias e rotas e não voltar a comprar mais aparelhos durante toda a duração do plano. Menos faixas, menos rotas e menos aviões significa: despedir mais gente.
A carta da Comissão não é uma formalidade. É um toque de clarim para as hostes do capital e seus servidores, chamando “ao ataque e em força”!
Não é só o futuro dos trabalhadores da TAP e o futuro da TAP que estão em jogo.
Está em jogo a capacidade dos trabalhadores portugueses de se defenderem dos brutais ataques que o patronato prepara, do milhão de despedimentos prometido pela Business Roundtable Portugal dos Mellos, Azevedos e Amorins. Estão em jogo as actuais e as futuras gerações de trabalhadores deste país.
Para os trabalhadores, outro som de clarim tem de soar e rapidamente: “Ao contra-ataque e em força!”.
A história é conhecida.
O governo adoptou um “plano de restruturação” para, diz ele, “salvar” a TAP, há muito em crise, na sequência de anos de gestão privada – e à beira da falência com o colapso do tráfego aéreo ditado pela pandemia.
O plano consiste na capitalização da companhia pelo Estado a troco da redução maciça dos efectivos de pessoal, aviões e rotas; e em cortes dos salários dos trabalhadores em proporções que nem debaixo da bota da troika se conheceram.
Porém, o plano de restruturação, ao incluir “ajuda estatal”, carece, segundo os tratados europeus, de autorização da União Europeia e seus órgãos, guardiões não eleitos da “concorrência livre e não falseada”.
No dia 16 de Julho passado, a comissária da concorrência, que ninguém elegeu, escreveu ao governo português uma carta com as suas apreciações sobre a ajuda do Estado português à TAP. Seguiu-se-lhe, no dia 6 de Agosto, um “aviso” publicado no jornal oficial. O aviso convida “partes interessadas” a apresentar observações “nos termos do nº 2 do artigo 108º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)” .
A carta e o aviso suscitaram muito pouca reacção na imprensa portuguesa. O governo assobiou para o lado. Por exemplo, segundo o “Jornal de Negócios” de 3 de Agosto “a missiva é, segundo clarificam os ministérios de Pedro Nuno Santos e João Leão, uma formalidade”.
Será?
Nada como lê-la. A carta foi, afinal, publicada no início de Agosto.
Aí começam, porém, as dificuldades. Duas, à cabeça.
1. Primeira dificuldade
A carta, enviada pela Comissão ao Estado português, é enviada e publicada – apenas – em inglês. Um pouco estranho, sabendo-se que o Regulamento nº 1 de 1958 (o primeiro regulamento da história, que estabelece o regime linguístico da antecessora da UE!) diz taxativamente, na redacção actualmente vigente do seu artigo 3º: “Os textos dirigidos pelas instituições a um Estado-membro ou a uma pessoa sujeita à jurisdição de um Estado-membro serão redigidos na língua desse Estado.”
Não cremos errar demasiado em pensar que a língua do Estado português é o português.
Será a carta da Comissão, então, ilegal?
Não. A esse título, pelo menos, a carta não é ilegal. Como na própria carta se explica, ela é redigida e publicada exclusivamente em inglês porque “Portugal concordou em derrogar excepcionalmente aos seus direitos decorrentes do art. 342º do TFUE, em conjugação com o Regulamento CE 1/1958, e em a decisão ser adoptada e notificada, para os efeitos do art. 297º do TFUE, em inglês” (note-se que esta citação é, forçosamente, uma tradução do texto da carta pelo autor destas linhas).
“Portugal” começa logo, portanto, por renunciar ao seu direito fundamental de a carta lhe ser enviada e publicada em português. Porquê? E: será assunto menor?
Relembre-se: a carta é a base do aviso para que as “partes interessadas” se pronunciem.
É impossível escapar ao corolário: para “Portugal”, ou seja, para o governo renunciante aos seus direitos, os trabalhadores da TAP não são parte interessada. Tanto quanto se sabe, na esmagadora maioria, a língua deles é a portuguesa. Se as têm, as suas observações não interessam, portanto.
2. Segunda dificuldade
Para quem tenha conseguido ultrapassar a primeira, a segunda dificuldade é que os dados concretos, nomeadamente numéricos, sobre a empresa e o contexto em que opera, são elididos e substituídos por reticências entre parênteses rectos. Assim, fica mais difícil fazer observações concretas.
Esta regra é justificada pelo “sigilo comercial”. Mais popularmente: “o segredo é a alma do negócio”.
Não espanta a preocupação da Comissão. Não erra muito quem vir nos tratados da União Europeia pouco mais do que um quadro legal novo (dito “supranacional”), que, nos Estados-membros, liberta o negócio dum risco que foi fonte de muitos dissabores no passado: o risco de os povos respectivos, exercendo o voto, ou outro desconchavo do género, decidirem que querem leis inconvenientes para os negociantes.
Curiosamente, porém, a regra do sigilo não é aplicada universalmente. Quando se trata de justificar as conclusões da Comissão – e a Comissão chega a conclusões, já lá vamos – já se pode pôr os números visíveis. Por exemplo, quando se indica a quota da TAP nas faixas horárias do aeroporto de Lisboa, um dado comercial que, no mercado da aviação, é a “alma do negócio”, lá se põe, preto no branco: 50 a 60%.
3. A “formalidade”
Segundo o governo, estaremos, então, perante uma mera formalidade. Ninguém precisa de fazer grande caso. O governo submeteu. A Comissão examina. A Comissão emite um aviso, pede observações aos interessados. Mais nada.
Mais nada?
O aviso é publicado ao abrigo do nº 2 do artigo 108º do TFUE. Este número diz assim:
“Se a Comissão, depois de ter notificado os interessados para apresentarem as suas observações, verificar que um auxílio concedido por um Estado ou proveniente de recursos estatais não é compatível com o mercado interno nos termos do artigo 107º, ou que esse auxílio está a ser aplicado de forma abusiva, decidirá que o Estado em causa deve suprimir ou modificar esse auxílio no prazo que ela fixar.”
Mais: o “aviso” não é uma tábua rasa a preencher com observações. O aviso pede observações a respeito da posição expressa pela Comissão na carta pouco antes enviada a “Portugal”.
A carta da Comissão, incluída no aviso, também é uma “formalidade”?
A carta da Comissão descreve, primeiro, que processo vai seguir: o do tal nº 2 do artigo 108º do TFUE. Depois, descreve o “beneficiário da ajuda” (a TAP) e as suas circunstâncias e historial económico-financeiro recente. Descreve a origem dos problemas financeiros e de liquidez da TAP. Descreve o plano de restruturação comunicado pelo governo português. Descreve a posição das autoridades portuguesas.
Tudo isto em sete páginas e meia.
Mas a carta tem 15 páginas. As sete páginas que não são ocupadas pelo “Procedimento” (capítulo 1) e “Descrição” (capítulo 2) são compostas por outros dois capítulos.
O capítulo 3 chama-se “Apreciação das Medidas”. E o (breve) capítulo 4 chama-se “Conclusões”.
Ora, estes dois capítulos são tudo menos formalidades.
4. A “Apreciação” da Comissão
A Comissão avalia, primeiro, que há efectivamente ajuda do Estado. Diz que a há, primeiro, porque o próprio Estado português diz que a há e, segundo, porque, olhando com os seus próprios olhos, verifica que a há. Conclui assim a avaliação: “Consequentemente, o aumento de capital e a garantia dos empréstimos distorce ou ameaça distorcer a concorrência.”
A seguir, avalia se a ajuda é legal; e avalia se é “compatível com o mercado interno”.
Conclui que, por enquanto, é legal – porque ainda não foi efectivada.
Quanto a compatibilidade, a Comissão começa por observar que a TAP, estava, de facto, em risco iminente de insolvência; e que a companhia desempenha um papel chave na economia portuguesa. Acerca da viabilidade de longo prazo da companhia, que o governo português garante assegurada pelo seu plano, a Comissão avalia, porém, que ela está longe de estar garantida: há muitas “incertezas”, nomeadamente a evolução da procura.
Sobretudo, a Comissão avalia como insuficiente a “participação própria, real e actual” da empresa na restruturação. Dado que a companhia é e será incapaz de arranjar financiamento no mercado – a Comissão nota secamente que as agências de notação consideram as obrigações da TAP “lixo” – , grande parte da participação própria vem de “poupanças” já negociadas – ou seja, dos acordos com os representantes dos trabalhadores, que importam em reduções de efectivos e salariais brutais, e da redução dos aviões e rotas. Ora, a participação própria ficar-se-á por 36% do total do plano, em vez do mínimo de 50% exigível. A Comissão considera, assim, que o plano falha o critério da “proporcionalidade”.
Por fim, a Comissão avalia as medidas limitativas da distorção de concorrência incluídas no plano. E conclui que não chegam. O plano não prevê suficientes desinvestimentos, depreciações, saídas de mercados e encerramentos de actividade. Em particular, o plano não compromete a TAP a abrir mão de suficientes faixas horárias no aeroporto de Lisboa (onde deterá 50 a 60% delas) nem a não voltar a aumentar o número de aviões da frota à medida que a procura aumente (“pelo contrário”, diz a Comissão).
A conclusão geral da Comissão é clara: o plano, tal como está, chumba. Não reúne os critérios de proporcionalidade e de compatibilidade com o mercado interno.
Delicadamente, a Comissão avisa que, consequentemente, a manter-se a situação, as ajudas teriam de ser reavidas do beneficiário.
A Comissão dá um mês ao Estado português para apresentar observações e informação que a ajudem a reavaliar as ditas “proporcionalidade” e “compatibilidade”.
Mas não é para dar informações de que se tenha descuidadamente esquecido que o Estado português tem mais uma semana. É para alterar o plano, tornando-o “compatível” e “proporcional”.
E, para isso, vai ser preciso:
– Aumentar a “participação própria” da companhia no plano. Em bom português (como vimos, a carta evita cuidadosamente o português, bom ou mau), isto significa reduzir ainda mais os custos salariais e despedir mais gente.
– Desinvestir mais. Em particular, abandonar definitivamente faixas horárias e rotas e não voltar a comprar mais aparelhos durante toda a duração do plano. Em bom português, menos faixas, menos rotas e menos aviões significa: despedir mais gente.
Dá para perceber porque é que o governo fez tudo para que os trabalhadores portugueses, incluindo e sobretudo os da TAP, não tomem conhecimento da carta da Comissão Europeia.
Mas uma formalidade é o que a carta não é.
É, sim, um toque de clarim para as hostes do capital e seus servidores. Diz: “ao ataque e em força”!
Para os trabalhadores, outro som de clarim tem de soar e rapidamente: “Ao contra-ataque e em força!”.
Não é só o futuro dos trabalhadores da TAP e o futuro da TAP que estão em jogo.
Está em jogo a capacidade dos trabalhadores portugueses de se defenderem e defenderem as suas conquistas dos brutais ataques que o patronato prepara, do milhão de despedimentos prometido pela Business Roundtable Portugal dos Mellos, Azevedos e Amorins. Estão em jogo as actuais e as futuras gerações de trabalhadores deste país.
* Adriano Zilhão
Não ao estado de emergência antigreve e pró-patronal –
Via Esquerda
CONVERGÊNCIA
15 DE AGOSTO DE 2021
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