As crianças e a violência doméstica
A violência doméstica produz danos graves no desenvolvimento da criança, alguns mesmo irreversíveis ou dificilmente reversíveis, que podem perdurar por mais ou menos tempo na sua vida, mesmo na vida adulta. Quem, já adulto ou adulta, foi vítima de violência doméstica em criança sabe que muitas das suas decisões ao longo da vida se devem à forma como resolveram, dentro de si mesmas/os, os impactos do abuso.
Só agora, em 2021, através da Lei 57/2021, de 16 de agosto, o Estado Português concede à criança e jovem menor de 18 anos o direito a usufruir do estatuto de vítima - isto é, a possibilidade de acesso aos direitos das vítimas: proteção e segurança, apoio na recuperação e ressarcimento.
Os estudos mostram que as consequências da VD nas crianças e adolescentes abrangem um amplo leque desde as dimensões cognitivas (diminuição da concentração e da memória), às dimensões da sociabilidade e sexualidade (relações afetivas, de amizade, de relacionamento com as outras pessoas), passando pela dimensão do comportamento. Estas consequências podem variar, de acordo com o temperamento e a idade da criança, de acordo com o tipo de violência doméstica que ele/a e a sua mãe sofreram e de acordo com o tempo de duração dos maus tratos.
Há uns anos atrás, muitas pessoas pensavam que, se a(s) criança(s) não fosse(m) alvo(s) direto da violência — isto é, se o agressor não agredisse, física, psicológica ou sexualmente a(s) criança(s) — então, não seria vítima de violência doméstica. Puro engano.
Tal como num ataque a um banco por gangue armado, todas as pessoas que ali estavam sofrerão, em maior ou menor grau, o impacto do medo de serem agredidas (mesmo que as armas não lhe tenham sido diretamente dirigidas); agora, imaginem uma criança no seio de um grupo que deveria cuidar da sua proteção e que, em princípio, deveriam ser as pessoas a dar-lhe carinho e amor. A possibilidade de "normalizarem" a violência doméstica como símbolo de amor e carinho é, como é fácil de inferir, bastante grande, se não for realizado um trabalho de proteção, segurança, apoio e recuperação.
Eram essas conceções do senso comum que permitiam a muitas pessoas, inclusive, magistrados/as, defender os direitos dos progenitores como se de parentalidade se tratasse. Voltando ao exemplo do ataque à mão armada de um banco, é como se incentivassem as vítimas a encontrarem-se regulamente com os atacantes (e, talvez, com as armas na mão). Mesmo quando a mulher vítima pedia apoio, via-se, muitas vezes, obrigada a levar a criança ao progenitor, por decisão do tribunal. Estas decisões mostram que, para parte do sistema social (incluindo o sistema judicial), as crianças são parte da propriedade dos senhores da Terra, e que uma família é um conjunto de pessoas subjugadas ao senhor patriarcal. Portanto, todos os avanços civilizacionais em termos dos direitos das crianças e da construção de família como lugar de proteção, carinho, respeito e entre-ajuda ainda não foram assimilados por muitas pessoas com posições determinantes no sistema social. Com isto, apesar de a mãe ter iniciado um processo de (re)construção de um projeto de vida sem violência, a violência doméstica continuava a pender, como uma guilhotina, sobre a cabeça, a mente, o corpo e a alma da criança.
Se, de facto, forem aplicadas e no espírito dos direitos das crianças e das mulheres, estas alterações legislativas podem constituir um avanço na prevenção da violência doméstica e do femicídio nas relações de intimidade.
Só uma nota para o facto de que a legislação, enquanto dimensão da atividade do Estado, encerra contradições internas. Como diz Maria Lugones, o Estado democrático-burguês dá com uma mão e retira com a outra. Vejamos o exemplo concreto na alteração do Código Penal (abaixo transcrita): "Quem for condenado por crime previsto no presente artigo [VD] pode, atenta a concreta gravidade do facto...". Esta redação deixa margem de manobra a magistrados com conceções patriarcais para não a aplicarem. Importa lembrar que as condenações por violência doméstica são ínfimas em relação ao número de denúncias. Esta redação diz-nos duas coisas: i. a dúvida colocada sobre a condenação de um arguido por violência doméstica; e ii. a possibilidade de o Tribunal de Família e Menores reavaliar a gravidade da violência doméstica e decidir, a partir desta reavaliação, a aplicação da medida.
Enfim. Tenhamos esperança.
Em baixo, transcrevo as principais alterações na Lei 112, 2009, de 16 de setembro, introduzidas pela nova Lei 57/2021, de 16 de agosto, e as alterações ao Código Penal.
Deixo-vos com Suzanne Vega e a canção "Luka", uma criança vítima de violência doméstica. Espero que gostem.
Principais alterações da nova lei 57/2021, de 16 agosto:
(a redação no masculino é da responsabilidade do Diário da República, 1ª Série, nº 158, pgs 6 e segs., sublinhados nossos):
Art.º 2º, 1.
Para efeitos da presente lei, considera-se:
a) "Vítima" a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente, um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152º do Código Penal, incluindo as crianças ou jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica.
Art.º 14º
6. Sempre que existam filhos menores, a atribuição do estatuto de vítima à criança e à pessoa adulta é comunicada imediatamente pelas autoridades judiciárias ou pelos órgãos de polícia criminal à comissão de proteção de crianças e jovens e ao tribunal de família e menores territorialmente competente.
Art.º 31º Medidas de coação urgentes
1. Após a constituição de arguido pelo crime de violência doméstica, o juiz pondera, no prazo máximo de 48 horas, a aplicação, com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, de medida ou medidas de entre as seguintes:
(…)
c) Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada de família, impondo ao arguido a obrigação de a abandonar;
d) Não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios, nem como não contactar, aproximar-se ou visitar animais de companhia da vítima ou da família;
e) Restringir o exercício de responsabilidades parentais, da tutela, do exercício de medidas relativas a maior acompanhado, da administração de bens ou da emissão de títulos de crédito.
4. As medidas de coação que impliquem a restrição de contacto entre progenitores ou entre estes e os seus descendentes são imediatamente comunicadas pelo Tribunal ao Ministério Público junto do tribunal competente, para efeitos de instauração, com caráter de urgência, do respetivo processo de regulação ou alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais e/ou da providência tutelar cível entendida adequada.
Alteração ao Art.º 152º do Código Penal:
1.
Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos ou patrimoniais próprios ou comuns:
(…)
e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas a), b) e c), ainda que com ele não coabite.
(…)
6.
Quem for condenado por crime previsto no presente artigo [VD] pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.
Agosto, 2021
Maria José Magalhães
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