O sucesso da JMJ: a religião e a política de braço dado[1]

 




                                           O sucesso da JMJ: a religião e a política de braço dado[1]

                                                   Manuel Carlos Silva*

Em abordagens convencionais assume-se e proclama-se que religião e política constituem duas esferas que não se interseccionam e, como tal, devem ser temas tratados separadamente. Há, porém, a este respeito, nomeadamente no campo da sociologia,  diferentes e mesmo contrastantes concepções entre autores clássicos. Enquanto, numa perspetiva durkheimiana, a religião, sendo fenómeno estruturante da sociedade, constitui um ‘sistema solidário de crenças e práticas relativas a coisas sagradas’ e, como tal, opostas aos assuntos profanos, numa abordagem marxista, a religião, enquanto fenómeno superestrutural, ideológico e derivado das condições económicas de trabalho alienado, seria um subproduto da miséria humana, uma criação fantasmagórica, o ‘suspiro da criatura oprimida’, o ‘ópio do povo’. Se Émile Durkheim oculta a polarização dos interesses contraditórios na sociedade, assim como o papel ideológico da religião na defesa dos interesses dominantes, Karl Marx, certamente inovador na análise da dimensão alienante da religião, subestimou contudo o nível interativo, vivencial e/ou afetivo da crença religiosa por parte dos crentes, nomeadamente das pessoas em sofrimento. Nesse sentido Max Weber, convergindo com a perspetiva marxista quanto à função da religião na conservação e/ou legitimação de determinada ordem social e política e nas relações de dominação, complementa a perspetiva marxista e permite uma articulação pluricausal do religioso e do político sem descurar a vertente económica dos interesses ‘mundanos’ (dieseitig). O autor releva os significados e sustenta a imbricação do fenómeno religioso com o campo organizacional e político na sociedade e no seio das respetivas Igrejas (vg. polarização entre sacerdotes/pastores e fiéis leigos).

A síntese criativa das perspetivas marxista e weberiana viria a ser desenvolvida por Pierre Bourdieu e Veit Bader, ao considerarem a religião como efeito ou produto social (opus operatum) do económico e como quadro cognitivo de orientação e atividade (modus operandi) na vida social. Porém, o mais relevante a assinalar é que a religião, embora tenha excepcionalmente inspirado movimentos alternativos, emancipatórios e críticos da realidade (vg. heréticos contestatários, teólogos da libertação), em regra historicamente tem tido uma função de dominação e legitimação ideológica dos interesses das classes dominantes. Tal é constatável quer na antiguidade, quer na idade média ao lado da senhoriagem feudal, quer na Inquisição e nos processos de colonização com o símbolo da cruz ao lado da espada, na escravização de negros/as, na apropriação de terras e na repressão de línguas, culturas e crenças nativas indígenas e, já entre os séculos XVIII e XXI, nos movimentos ultrareacionários anti-iluministas e anti-socialistas. A história da sociedade portuguesa, salvo casos excepcionais, evidencia como a hierarquia eclesiástica foi o principal sustentáculo institucional de movimentos absolutistas, antirepublicanos e ditatoriais, nomeadamente do salazarismo. 

A religião, assim como a Igreja, está incrustada em contextos políticos, embora tenha tido a excepcional capacidade de adaptação aos diversos tempos históricos, sendo de relevar a magistratura de ‘aggiornamento’ do Papa João XXIII face a dogmas ou a do Papa Francisco na crítica à economia liberal em prol da justiça social e ecológica. Esta  mensagem torna possível às esquerdas potenciar, numa base de respeito mútuo, algumas convergências na prática, nomeadamente com jovens crentes de classes populares, irmanados/as nas lutas quotidianas pela paz e por mais bem-estar social para todos/as!

Este preâmbulo de enquadramento teórico e histórico poderá ser útil para compreender e explicar a onda gigantesca na Jornada Mundial da Juventude (JMJ) em torno dos temas do amor, da fraternidade, da esperança, induzida e animada pelo carismático Papa Francisco com uma enorme adesão, nomeadamente de jovens crentes católicos e doutras religiões, tendo inclusive impressionado não-crentes pela  aceitação e abertura a todos/as! Para além da componente mística do evento, estamos perante uma manifestação ímpar de um processo comunicacional e sobretudo duma racionalidade emocional-afetiva, mobilizando mais de 1.500.000 de crentes, para o que a abordagem weberiana mais uma vez nos auxilia para interpretar o fenómeno.

Analisando a preparação, a performance e o sucesso da JMJ, a instituição eclesiástica, nomeadamente portuguesa, beneficiou de um privilégio por parte do Estado português com um financiamento de mais de 80 milhões de euros. Por sua vez, os poderes políticos, sabendo da relevância nuclear da Igreja na redistribuição dos votos pelos dois maiores partidos (PS e PSD), andam de braço dado com a hierarquia eclesiástica, violando o princípio constitucional da separação do Estado laico e das Igrejas. As devotadas diligências do Presidente da República que desde a primeira hora até à despedida do Papa protagonizou e interiorizou também como seu o evento, assim como as extremosas disponibilidades do Primeiro Ministro e doutros Ministros/a do Governo PS ou ainda o enlevado afinco do Presidente da Câmara de Lisboa (do PSD) não são gratuitas. Não é por acaso que PS e PSD não colocaram qualquer objeção de fundo ao referido gasto desmesurado, colando-se ao sucesso da JMJ e reivindicando os seus louros para futuros dividendos eleitorais.

* Sociólogo, Professor Universitário



[1] Este texto foi publicado no Público on line a 11/08/2023.


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