Bloco Mesa Nacional. OPINIÃO - O BLOCO "PUTINIZADO" *







 OP *
 Aquilo que ontem se passou na Mesa Nacional (MN) do Bloco de Esquerda (BE) é de uma gravidade extrema. Assim, para além de uma grosseira violação dos estatutos do partido, constitui um sinal inequívoco da crescente falta de democracia interna no seu interior, que apelido de “putinização”.

            De acordo com os estatutos do BE, a MN escolhe o primeiro quinto dos candidatos/as em cada círculo eleitoral, sob proposta da assembleia distrital.

            Ao contrário do que sucedeu em grande parte do país, onde, fruto da crescente desmoralização e desmobilização dos/as aderentes, pouca gente compareceu e votou (em Coimbra, no meu distrito, apareceram 23 pessoas e votaram 19), a assembleia distrital de Santarém, onde concorriam duas listas, foi mais concorrida, tendo votado 119 aderentes. Destes/as, 74 optaram pela que era encabeçada pela Ana Sofia Ligeiro (da Convergência/moção E) e 44 pela que tinha como líder a atual deputada, Fabíola Cardoso (Tendência Esquerda Alternativa/moção A), tendo havido um voto nulo. Também em Portalegre a candidata afeta à moção E, Cecília Carrilho, venceu, derrotando o oficialista Luís Carita.

            Sábado, os/as eleitos/as da moção E foram surpreendidos/as por um documento da direção que dava conta dos nomes indicados pelas distritais em todo o país, mas com uma nuance relativamente a Santarém, onde eram colocadas em alternativa a lista vencedora e a derrotada. Recorde-se que, em 2019, sucedeu algo de semelhante: o então deputado Carlos Matias, maioritariamente votado pelos/as aderentes daquele distrito, foi preterido pela mesma camarada na Mesa Nacional.

Já em Portalegre, onde o BE não espera eleger ninguém, as coisas foram pacíficas e foi aceite, sem oposição, o nome proposto pela respetiva assembleia distrital.

            Apesar das nossas diligências, a direção do partido não cedeu e o que fez foi dar a possibilidade de os/as mesários/as apresentarem listas alternativas em todos os distritos, uma decisão claramente antiestatutária e que se destinava apenas a esconder a exceção criada para Santarém. Não por acaso, apenas apareceu uma nova para Portalegre, com o nome do derrotado Luís Carita e subscrita pelo mesmo camarada. Se o ridículo matasse …

            Curiosamente, para justificar o injustificável, socorreram-se de uma deliberação da Comissão de Direitos, datada de 2019, que, supostamente, teria legitimado a atuação de então da direção no mesmo distrito. Só que, para além da argumentação aí vertida ser risível, tal o contorcionismo jurídico que mostra, tal decorreu de uma queixa, algo que agora não sucedeu.

            Apresentámos, então, uma proposta de retirada da lista derrotada de Santarém (e, posteriormente, também de Portalegre), que foi colocada à votação sem discussão, o que levou a que, no meu caso pessoal, não pudesse fazer a intervenção que tinha programado e cujas linhas desenvolverei neste texto. Como seria de esperar, foi rejeitada, tendo contado apenas com os votos favoráveis dos membros das moções E (Convergência) e N (Alternativa Novo Curso).

            Face ao sucedido, e tal como tínhamos decidido previamente, os 17 representantes da moção E decidiram abandonar a MN. Pouco depois, enviámos um comunicado à comunicação social explicando as razões da nossa atitude. Também os 5 membros da N saíram da sala. Ou seja, 22 dos 80 mesários/as (27,5%) abandonaram o conclave, rejeitando compactuar com a manobra antiestatutária e antidemocrática da direção do BE.

            Há, ainda, a referir que, durante a discussão das linhas programáticas, vários elementos de topo das duas tendências oficialistas – a Tendência Esquerda Alternativa (TEA) e a Rede Anticapitalista (RAC) – atacaram ferozmente as moções opositoras, em especial a E, pela sua oposição à declaração política proposta pela direção à MN no que respeita à estratégia eleitoral. É, aliás, curioso que a Catarina Martins venha afirmar que esta foi aprovada por unanimidade. Não é mentira, mas a coordenadora do BE “esqueceu-se” de referir que, quando esta foi votada, já os elementos eleitos pelas moções críticas tinham abandonado a sala.

            Contudo, para além da flagrante violação estatutária, o que todo este processo revela é algo de eminentemente político e que se prende com a crescente perda de democracia interna no seio do BE, que tem sofrido um acelerado processo de “putinização”.

            Simpatizei com o Bloco desde a sua fundação. Achei o partido uma “pedrada no charco”, que veio ocupar um espaço da esquerda que não se revia nem no social-liberalismo do PS nem na ortodoxia do PCP ou no anacronismo dos grupos da antiga extrema-esquerda que estiveram na base da sua formação.

            O Bloco trouxe para a agenda política um conjunto de causas, em especial no plano dos costumes, que estavam remetidas à invisibilidade. Ao mesmo tempo, revelava uma nova forma de fazer política e, não menos importante, uma estética extremamente inovadora e criativa, que muito me atraiu. E pensei estar em presença de um grupo de gente diferente, tolerante, moderna, honesta e inconformada com as diversas injustiças existentes na nossa sociedade.

Assisti, como convidado, à Convenção Nacional de 2014, na qual houve uma luta titânica pelo poder entre a RAC (liderada pela Catarina Martins e pelo saudoso João Semedo) e a TEA (sob a liderança de Pedro Filipe Soares), a que havia a juntar mais duas moções críticas. Presenciei, então, um espetacular exercício de democracia, com um debate extremamente vivo, mas civilizado, apesar da enorme tensão e do ambiente dramático que se viveu no Pavilhão do Casal Vistoso, em Lisboa. Depois de a TEA ter visto, no primeiro dia, aprovadas as suas alterações estatutárias, no final deu-se o triunfo, por oito votos de diferença, da moção promovida pela RAC e um empate na votação para a MN. Um resultado sem vencedores nem vencidos que salvou o partido da implosão. No ano seguinte, tornei-me aderente.

            Entretanto, as duas tendências principais entenderam-se e resolveram partilhar o poder. Se, nessa altura, tal acordo foi importante para preservar a unidade do BE, a verdade é que a sua perpetuação conduziu à formação, no seu seio, de um “bloco central”, que se assenhoreou do aparelho partidário, remetendo as oposições internas para a marginalidade.

            Daí que o partido democrático e participativo que me fascinou e no qual entrei com grande dose de idealismo se tenha transformado, gradualmente, numa formação de cariz cada vez mais oligárquico, centralizado e burocrático.

Por isso, falo em “putinização”. À exceção da liderança (seria injusto, apesar de tudo, comparar Catarina Martins a Putin), está lá tudo. Assim, essa oligarquia partidária controla o aparelho e as duas grandes tendências que a constituem partilham entre si os lugares e os recursos disponíveis. Não por acaso, grande parte dos/as dirigentes nacionais e alguns/mas distritais e concelhios/as são funcionários/as do partido, numa promiscuidade pouco saudável entre a direção política e a organização partidária. E, de entre estes/as, contam-se pelos dedos os/as que são afetos/as às correntes críticas. Afinal, dependem economicamente do partido e, se se “portarem mal”, poderão sofrer retaliações.

Por seu turno, a Comissão de Direitos, órgão jurisdicional do partido, é constituída por sete membros. Dos cinco eleitos pela maioria, quatro são funcionários/as e nenhum/a é jurista. Apenas o eleito pela moção E tem formação jurídica. Obviamente que tal realidade macula, em muito, a sua credibilidade.

Tal como na Rússia de Putin, há eleições, mas o partido dominante (lá) e a moção A (cá) ganham sempre e por grande maioria, graças ao controlo aparelhístico da máquina estatal (lá) ou partidária (cá) e da comunicação política. A oposição é simplesmente tolerada e deve manter-se “bem-comportada”, contentando-se com as “migalhas” do poder. Caso contrário, a força deste abater-se-á sobre ela. Tal como lá, em que existe um Zhirinovsky, político da extrema-direita que se afirma de oposição radical, para captar o voto de protesto, mas que não passa de uma marionete do presidente russo, também aqui há uma tendência (a moção C), supostamente crítica, mas que apenas serve para fazer oposição … à oposição interna.

Mas este processo de Santarém lembra-me algo, igualmente, de triste memória. Quem não se recorda de Trump dizer que, se perdesse nas urnas, ganharia no Supremo Tribunal, onde três dos nove juízes foram por ele nomeados? Não foi o que se passou agora? Afinal, a lista afeta à direção podia perder na assembleia distrital que ganharia na MN, onde o voto dos/aderentes seria revertido em favor da candidata derrotada. Nunca pensei que a mentalidade “trumpista” conquistasse algumas pessoas da direção do BE, mas, infelizmente, tal aconteceu. Ao que chegámos!…

E, já agora, lamento que a camarada Fabíola Cardoso, contra quem, pessoalmente, nada tenho e a quem reconheço um notável e pioneiro trabalho no domínio do ativismo LGBTI+ e, em especial, da visibilidade lésbica, se preste ao triste papel de marionete da direção do partido ou da tendência a que pertence. Aceitar ser candidata duas vezes depois de ter sido duas vezes derrotada pelos/as camaradas do seu círculo eleitoral, “vendendo-se por um prato de lentilhas”, é muito triste. Segue-se a pergunta que se impõe: se nem os/as camaradas consegue convencer, como vai convencer o resto do eleitorado? Seria bom que tivesse um rebate de consciência e renunciasse à candidatura, mas, infelizmente, tal não irá acontecer.

Tudo isto carece de qualquer lógica. Afinal, se a escolha dos/as principais candidatos/as a deputados é definida centralmente, porque não assumi-lo? Qual o interesse de os/as aderentes votarem se, depois, a sua vontade é desrespeitada? Afinal, a eleição só é válida se der o resultado pretendido pela direção. É isto um partido democrático?

Não sou contra a ideia de um “droit de regard” da MN relativamente às escolhas dos/aderentes. Mas aquela apenas deve intervir se estas recaírem em candidatos/as que tenham tido ou sejam suspeitos de comportamentos prejudiciais ao partido. E, nesse caso, teria de pedir à respetiva estrutura distrital que indicasse outro(s) nome(s). Foi essa a proposta que apresentei na Convenção e que a maioria amplamente rejeitou. Com a atitude que tomou relativamente a Santarém, a direção parece querer transformar a Mesa Nacional em algo semelhante ao Comité Central do PCP.

Sinceramente, não entendo a estratégia da oligarquia partidária, a não ser numa lógica perversa de querer empurrar as correntes críticas para fora do BE, mesmo que isso implique uma perda de influência eleitoral e social do partido.

Perante uma eleição muito difícil para o Bloco, fragilizado pelo “spin” do PS sobre o voto contra o Orçamento de Estado (OE), a lógica seria unir o partido, procurando incluir todos/as, agregando o máximo possível. Ora, a atitude tomada, de querer impor, à força, a sua candidata em Santarém e rejeitar a da oposição interna, apesar de esta ser a preferida dos/as aderentes do distrito, vai, exatamente, no sentido oposto: divide, exclui e desagrega. Com que cara vão os/as dirigentes nacionais pedir aos/às aderentes que viram a sua vontade tão despudoradamente desrespeitada para fazer campanha?

A saída de muitos/as camaradas de valor inquestionável, a perpetuação de outros/as no poder a vários níveis e a subida de alguns/mas carreiristas e oportunistas são um preocupante sinal de decadência do Bloco. Não por acaso, a comunicação política, que, pela sua criatividade, era o forte do BE, é hoje, em geral, de uma “pobreza franciscana”. Basta comparar a irreverência dos primeiros cartazes com o cinzentismo dos atuais. Daí que se, antes, era o partido que mais atraía a juventude, tal não sucede hoje. E, pior, os/as jovens que hoje entram no Bloco não encontram, no seu interior, estruturas que os acolham e a maioria acaba por sair, desiludida com formas de fazer política anquilosadas, centradas em lógicas de equilíbrios de tendência e em discussões que pouco ou nada lhes dizem.

Na realidade, na sua ânsia de não ceder qualquer quinhão do seu decrépito poder, as duas fações da oligarquia partidária e seus apêndices mostram uma arrogância cega que está a destruir o partido. Tal como a tripulação do Titanic, a direção do BE está convencida da sua inafundabilidade, mas a verdade é que caminha alegremente contra o “iceberg”. E, quando nele bater, será demasiado tarde para salvar o Bloco. E tanta falta que ele faz!…

* Jorge Martins


CONVERGÊNCIA29 DE NOVEMBRO DE 2021

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